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ANUÁRIO FASHION: Retratos de uma arte

Mais do que acompanhar as mudanças da sociedade, a fotografia de moda anda sempre um passo à frente e revela algo que desconhecemos sobre nós mesmos

Camila Carvas Publicado em 08/11/2011, às 17h13 - Atualizado em 08/08/2019, às 15h43

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United Colors - A campanha publicitária fotografada por Oliviero Toscani discutia as questões raciais e políticas - Divulgação Benetton
United Colors - A campanha publicitária fotografada por Oliviero Toscani discutia as questões raciais e políticas - Divulgação Benetton

Modelos com animais selvagens, mulheres nuas, denúncias de racismo, homens como objeto, crianças em poses sexys, críticas à guerra e uma “boneca barbie” que sofre violência doméstica. Todas essas fotos, originalmente feitas para a moda, geraram polêmicas, mas abriram novos caminhos. “Uma boa fotografia de moda é o reflexo dos imperativos sociais, morais e econômicos do nosso tempo, de uma maneira que outros estilos fotográficos não são”, diz Thomas Werner, professor da escola de arte, mídia e Tecnologia da Parsons, em Nova York, ao CARAS Fashion.“De guerras a booms econômicos, ela nos mostra onde estão nossos limites e como nós nos revezamos entre abraçá-los ou derrubá-los.”

Quando o americano Richard Avedon, em 1962, fotografou a então supermodelo Suzy Parker “fugindo” dos paparazzi com um longo de crepe Lanvin, ele transformou a fotografia de moda em teatro e, de quebra, questionou esse tipo de assédio. Na sátira glamourosa que Avedon criou para esse ensaio, um casal fictício de astros do cinema se apaixona durante as filmagens de um épico e foge dos fotógrafos em Paris vestindo Dior, Nina Ricci e Yves Saint Laurent. Já no final dos anos 1980, o italiano Oliviero Toscani chocou o mundo ao discutir conflitos sociais, políticos, religiosos e morais em campanhas publicitárias da Benetton. Pouco depois, foi a vez da britânica Corinne Day causar furor ao clicar a jovem Kate Moss sem maquiagem, magra e pálida. Sua implacável honestidade visual rompia com o exagero típico da década de 1980.

“Para a fotografia de moda é dada total liberdade”, diz Patrícia Gatto, professora do curso de Fotografia do Centro Universitário Senac São Paulo. “Na criação não há limites ou censuras, estes são impostos pela própria sociedade”, completa. Segundo o professor americano Werner, a moda tem a habilidade de pressionar e romper fronteiras. “Sempre haverá limites a serem testados e designers e fotógrafos dispostos a testá-los”, diz ele. A função da fotografia, assim como a de um quadro ou escultura, é mostrar um desejo, um conceito. E a ligação entre arte e fotografia fica ainda mais nítida na influência que movimentos artísticos como o pictorialismo, o dadaísmo e o surrealismo exerceram, principalmente, nos primeiros fotógrafos de moda do final do século 19, como Adolph de Meyer, Alfred Stieglitz, Erwin Blumenfeld e Man Ray.

O americano Man Ray não tem esse nome à toa. O pseudônimo adotado em 1909 significa ‘homem raio’, e diz muito sobre o seu trabalho. Em 1922, ele começou a explorar uma variante do fotograma que chamou de ‘raiogramas’, um método de produção de imagens de objetos direto em papel fotossensível. Retratista e fotógrafo de moda, Ray popularizou o chamado efeito Sabatier, ou solarização, que consiste em expor à luz os negativos para se obter diferentes tons. Durante os 20 anos em que viveu em Paris, Ray era membro influente dos círculos surrealistas e dadaístas que incluíam nomes como os escritores Tristan Tzara e Jean Cocteau e os pintores Salvador Dalí e Pablo Picasso. Man Ray também fez história, em 1937, ao publicar em uma revista de moda a primeira foto de uma negra.

A fotografia de moda, aliás, está diretamente ligada ao desenvolvimento da indústria fashion e às revistas especializadas. No começo do século 20, quando as ilustrações começaram a ser trocadas por fotos, o barão Adolph de Meyer foi precursor da fotografia de moda como arte e não apenas como documentação de um produto. “Suas fotos eram um ponto de referência para aqueles que freqüentavam a alta sociedade e pura fantasia para quem nunca havia ido a uma festa de gala”, diz Werner. De Meyer estudou contraluzes e soube usar objetos, como joias, biombos laqueados e vasos de cristal, para difundir reflexos e criar uma atmosfera onírica.

No início dos anos 1930, logo após a 1ª Guerra mundial, o mundo mudou e a fotografia de moda enveredou por novos rumos. O espírito modernista aparece na arquitetura, no design, na decoração e na moda. Edward Steichen, que havia sido fotógrafo aéreo durante o conflito, trouxe o corte seco e os contrastes de luz para seus trabalhos com moda. As mulheres que ele retratava eram mais ativas e dinâmicas. A beleza deixava de ser celestial para ser terrena, cotidiana. Suas fotos revelam não apenas um vestido, mas a personalidade de quem o usava. Caminhando nessa mesma direção, o húngaro Martin Munkacsi clicava modelos fora do estúdio e, nas palavras de Richard Avedon, “trouxe um gosto pela alegria e pela honestidade”.

Avedon, Irving Penn e Helmut Newton ganharam destaque depois da 2ª Guerra mundial. Nessa época, as revistas de moda deixaram de se limitar ao vestuário. Penn, por exemplo, divulgava fotos de moda, retratos e imagens “sociológicas” nas mesmas publicações. Ele mudou a ideia de fotógrafo de moda apenas como fotógrafo de roupas. Seu estilo gráfico refinado, quase uma pintura, destacava os componentes formais da fotografia e permitia que a imagem falasse sobre a roupa.

Ao contrário de Penn, que era ligado à pintura, Avedon conhecia bem as possibilidades que a câmera fotográfica oferecia. Durante a infância, quando sua família se deixava fotografar em frente a casas e carros de luxo que não eram seus, ele percebeu que era possível transformar o fingimento em verdade graças a uma máquina. Suas fotos de moda misturam fantasia e realidade. Nos anos 1950, fotografou alta-costura dentro de um circo. sua foto Dovima and the Elephants é umas das mais transformadoras da história. “Ao colocar Dovima, a primeira top model e a essência da aristocracia, entre dois elefantes, Avedon justapôs graça e poder bruto, a maciez do tecido e a delicadeza das linhas do vestido com a pele áspera dos animais, o espírito livre e o selvagem”, afirma Werner.

Já o alemão Helmut Newton explorou o sistema de classes, os costumes, o voyeurismo e o sex appeal. Ele foi o primeiro a conferir poder sexual às mulheres e a fotografar homens como objeto do desejo sexual delas.

Na década de 1960, nos Estados Unidos, o fotógrafo Bill Cunningham saiu às ruas de bicicleta com uma máquina na mão e o olhar atento. Inventou um novo modo de retratar a moda de rua, o chamado street style, e lançou “moda”. Hoje, blogs como o The Sartorialist, de Scott Schuman, mantêm na internet a tradição criada por Cunningham.

No Brasil, foi em 1958 que Otto Stupakoff fez aquela que seria a nossa primeira fotografia de moda. Nela, a atriz Duda Cavalcanti aparece com um vestido do costureiro Dener. Stupakoff morou em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Paris, Los Angeles e Nova York, sempre colaborou com respeitadas revistas de moda e fotografou personagens históricos como o ex-presidente dos Estados Unidos Richard Nixon e os escritores Truman Capote e Jorge Amado. Pelo conjunto de sua obra, foi eleito um dos dez fotógrafos de moda mais importantes dos anos 1970. No livro Sequências: Otto Stupakoff, com apresentação do fotógrafo Bob Wolfenson e editado pelo Instituto Moreira Salles, é possível encontrar algumas de suas obras. “Pelos seus trabalhos e pessoas que fotografou, ele pode ser considerado, de fato, um ícone dentro da história da fotografia de moda mundial”, diz Melissa Szymanski, professora de fotografia da Escola São Paulo.

Outro personagem relevante da fotografia de moda brasileira é Azemiro de Souza ou, simplesmente, Miro. A fotografia entrou por acaso em sua vida na década de 1970 e nunca mais foi embora. Aos 19 anos, Miro saiu de Bebedouro, no interior de São Paulo, sem nunca ter mexido numa máquina fotográfica. Na capital paulista, trabalhou em um laboratório e, aos 23, já sabia fotografar. Dois anos depois, estava em Paris e trabalhava como fotógrafo para grandes revistas de moda. Lá, conheceu Sarah Moon, famosa por suas fotos oníricas, e Guy Bourdin, cujas fotografias com tensão sexual, violência, humor e tabus estavam à frente de seu tempo e inspiraram nomes como David LaChapelle. Miro fez o anúncio do primeiro maiô da Lycra e, por mais de uma década, clicou as campanhas da Forum. Ainda em atividade, é reconhecido por seu domínio sobre os processos artísticos e técnicos.

Nos anos 1980, não foi apenas Oliviero Toscani que polemizou com suas fotos para a Benetton. Quando Bruce Weber fotografou o atleta olímpico Tom Hintnaus de cueca para a campanha de underwear da Calvin Klein, também houve controvérsia. “Os modelos masculinos não apareciam tanto quanto as mulheres e mostrá-los seminus numa época em que o movimento gay ganhava força era algo intencional”, diz Patrícia Gatto, do Senac. A polêmica gera publicidade indireta. O capitalismo, a indústria e a fotografia de moda caminham juntos. A foto alimenta um sonho e movimenta o mercado.

Como todo artista, o fotógrafo – e o estilista – tem o poder de captar expressões da sociedade e devolvê-las sob uma outra ótica. LaChapelle, com seus retratos de celebridades em situações provocadoras, é um exemplo. Suas fotos de Michael Jackson encarnando Jesus Cristo já soariam uma blasfêmia por retratarem uma pessoa comum como santo. Mas, para piorar, Jackson esteve envolvido em denúncias de pedofilia. Corinne Day também provocou um debate quando fotografou a modelo Kate Moss caída num banheiro e fez questão de não varrer o uso de drogas para debaixo do tapete. Segundo Corinne, “a fotografia tem que se aproximar o máximo da vida real, mostrando coisas que a gente não costuma ver”. E isso pode ser bom ou ruim. Mas sempre é transformador.