As paixões viscerais muitas vezes terminam em separação dolorosa

Nahman Armony Publicado em 03/05/2006, às 17h01

Nahman Armony -
Após algum tempo de união amorosa, eventualmente acontece de um dos parceiros começar a reclamar: "Você já não é o mesmo. Me escondeu muita coisa de sua personalidade. Me enganou para me conquistar. Antes, parecia adivinhar os meus desejos e mesmo se antecipar a eles. Agora não me entende, não tem consideração por mim." E por aí vai. Às vezes a briga esquenta. Um chama o outro de farsante, fingido. Uma carga de adjetivos negativos transforma o companheiro num canalha, num ser desprezível. Mas será ele de fato mau-caráter? Pode ser que sim. Também é possível, porém, que seja vítima da "síndrome de apaixonamento visceral". Esse tipo de apaixonamento toca o mais fundo do ser e estabelece uma relação na qual o único que conta é o outro, com seus desejos, melindres, peculiaridades. A atenção é inteiramente desviada de si mesmo e dirigida para o amado. O apagamento pessoal faz do amante um serviçal, quase um escravo. As questões pessoais, as próprias necessidades, suscetibilidades e desejos deixam de ter importância, são postos de lado. O único objetivo é fazer o outro feliz. Cada membro do casal, ao esmerar-se em comprazer ao parceiro, surge como um ente caído do céu, destinado a torná-lo venturoso para todo o sempre. É uma relação que lembra a dupla mãe bebê, em que a primeira deixa de lado os dissabores, as questões pessoais, os outros amores e interesses para se dedicar apenas ao seu rebento, àquele ser visceral gestado na intimidade de sua barriga. Em se tratando de casal amoroso, ambos são, metaforicamente, bebê e mãe. Um procura agradar e servir ao outro em detrimento de si próprio. O apaixonamento visceral tornará o casal tão amalgamado que podemos compará-lo a irmãos siameses, unidos por vísceras comuns. Quero aqui recordar o filme O Segredo de Brockeback Mountain, no qual vemos que nada, nem mesmo a morte, pôde separar os amantes. Eis aí o problema desse tipo de relação. Quando o mútuo fascínio declina, surgem as individualidades e as diferenças pessoais. Muitas variáveis entram então em jogo: se as diferenças forem tão grandes que tornem impossível a convivência, a relação de apaixonamento visceral fará com que a necessária separação, se puder acontecer, seja extremamente dolorosa, provocando muito sofrimento psíquico e físico. Se as diferenças não ultrapassarem o limite das possibilidades de entrosamento, a força da relação visceral ajudará a superar o desconforto causado pelas dessemelhanças facilitando a renúncia ao desejo impossível de entendimento perfeito. Como surge esse tipo de amor que estou chamando de apaixonamento visceral? Para explicar, vou me valer novamente do cinema. Existem alguns filmes que apresentam um tema recorrente. O namorado morre e retorna posteriormente no corpo de outra pessoa. A antiga namorada que permaneceu viva, ao encontrar-se por acaso com o antigo namorado em um novo corpo evidentemente não o reconhece, mas sente que existe algo de familiar nele. Essa mistura de estranho e familiar faz daquela pessoa um ser misterioso que surpreende, intriga e atrai. Algo antigo, vindo do passado remoto, vibra e ela se sente pronta a se aproximar daquele estranho/familiar para um apaixonamento visceral. Esses filmes são alegorias de encontros em que um enxerga no outro algo de seu passado mais longínquo vivido com a mãe ou outra figura poderosa. Um tipo de amor que pode ser uma bênção - quando não há uma incompatibilidade essencial e o casal ultrapassa a idéia de encaixe exato, aceitando as imperfeições, individualidades e diferenças - ou uma maldição - quando acontece o contrário: modos de ser irreconciliáveis ou impossibilidade de renunciar à perfeição dos primeiros tempos da relação.
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