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Decoração / Anuário

A rainha sonhadora e genial da arquitetura: Zaha Hadid

Os projetos de Zaha Hadid eram vistos como fantasiosos e impossíveis de serem feitos. Ela lutou contra o machismo, superou o preconceito contra os árabes e se tornou a mais consagrada arquiteta do mundo

Redação Publicado em 29/07/2011, às 06h55 - Atualizado em 08/08/2019, às 15h43

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Zaha Hadid - Divulgação
Zaha Hadid - Divulgação

A empregada desce para abrir a porta para mim. Ela é pequena, de meia-idade e se desculpa. “A campainha não está funcionando”, diz enquanto me guia até a cobertura do prédio. Quando a porta do  elevador se abre, penso que estou sofrendo de “cegueira da neve”. O branco mais branco está por toda parte – pisos brancos, paredes brancas, teto branco, esculturas de fibra de vidro brancas que servem como sofás brancos. Ao fundo do ambiente, vejo uma figura, com imensos óculos escuros pretos, sentada atrás de uma enorme mesa branca. Ninguém nunca disse que Zaha Hadid era uma mulher  comum. Ela está vestindo uma segunda pele preta, uma jaqueta Issey Miyake, legging preta e botas pretas com efeito molhado. Seu cabelo, tingido com henna, é castanho escuro avermelhado. Zaha tem 60 anos. Só ela poderia ser assim.

Esse é o lugar onde ela vive em Clerkenwell, no leste de Londres. Mas poderia muito bem ser sua galeria. De todas as suas obras, a mais espetacular e complexa é ela mesma. Você pode vê-la como a Rainha de Copas, da história de Alice no País das Maravilhas, gritando “cortem as cabeças deles” para súditos insubordinados. Ela é um monstro fantástico, um ditador intransigente de seu próprio mundo encantado, e está entre os melhores arquitetos do mundo. A revista Time a elegeu, em 2010, o pensador mais importante na sua lista de pessoas mais influentes. Este, realmente, é o momento dela. Depois de décadas sendo considerada uma lunática cujos prédios são irreais, ela finalmente está vendo suas criações serem compreendidas. Em 2010, ela recebeu o prêmio Stirling por seu centro de arte em Roma – o MAXXI, Museu Nacional de Artes do Século 21 –, projetou a ponte Sheik Zayed, em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, e construiu a Ópera de Guangzhou, na China. Este ano, Zaha entregará o centro de esportes aquáticos londrino que será usado nos Jogos Olímpicos de 2012.

Conheci Zaha há oito anos em seu estúdio, também em Clerkenwell. O lugar era uma antiga escola – apropriado, porque é comum ver seus jovens alunos tremendo em sua presença. Naquela época, ela me mostrou um vídeo com os projetos em que estava trabalhando. Eles se sucediam, fabulosos e futuristas, integrados às paisagens. Uma das construções se parecia com um delta ou com uma pista de autorama, outro lembrava uma falésia; seus ângulos estavam em todo o lugar, como pisos que se fundiam em paredes, que se fundiam em tetos. Ela sempre quis quebrar barreiras – entre operários e executivos (como na fábrica da BMW na Alemanha, onde os carros passam constantemente por uma correia transportadora), ou entre prédios e paisagens, ou entre o antigo e moderno. Ao contrário de muitos arquitetos homens que adoram as grandes construções fálicas, Zaha tende para as de formato de útero e conchas.

Os prédios propostos por ela eram verdadeiros atos de  imaginação. E algo mais. Então, o que mudou? “A percepção das pessoas em relação à arquitetura. As cidades tornaram-se mais ambiciosas de novo. Existia um tremendo interesse em prédios públicos, e a arquitetura estava na linha de frente desse discurso. Muitos projetos importantes foram feitos em competições e isso chegava ao público. Existia muito mais conhecimento e conversação sobre arquitetura”. Além disso, segundo Zaha, ela e sua equipe trabalharam loucamente. Em 2003, eram cerca de 70 empregados em um prédio. Hoje, esse número está próximo de 250, com outros 150 espalhados pelo mundo. Ela fala rápido com uma voz profunda e rouca, como é a da atriz Zsa Zsa Gabor, que sugere muitos cigarros (mas ela parou de fumar agora) e noites viradas.

Uma das críticas feitas ao trabalho dela é que não é sempre prático e amigável. O ponto mais baixo de sua carreira foi em 1995, quando a cidade de Cardiff, no Reino Unido, rejeitou sua casa de ópera futurística, apesar de ela ter batido 268 concorrentes numa competição. O design era tão radical que lhe foi pedida uma nova inscrição para uma segunda rodada, a qual ela também venceu. O projeto da ópera acabou enterrado e Zaha ficou nervosa. Ela afirmou que havia sido vítima de xenofobia, racismo, machismo, seja lá o que for – e ela tinha motivo. Rhodri Morgan, um político inglês, disse que o desenho lembrava a Caaba, uma mesquita em Meca, e que, se construída, poderia incitar uma fatwa (sentença de morte da lei islâmica). Depois disso, o trabalho foi sendo esquecido. Existem histórias de que a família dela chegava dirigindo seus Rolls-Royces e lhe dava dinheiro para continuar. “Queria que isso fosse verdade. Minha família me apoiou. Mas teria sido muito fácil se só isso tivesse sido suficiente. No escritório, nós realmente tivemos de trabalhar em equipe”.

Algum dia ela pensou que seu trabalho nunca seria feito? “Não. A razão pela qual eu digo não é porque tomei uma decisão, em meados dos anos 1990, de não deixar isso me atingir. Depois do que aconteceu em Cardiff, eu decidi que não pararia ou reclamaria sobre isso. Eu estava muito chateada, mas sabia que teria de seguir em frente”.

Zaha nasceu em Bagdá em 1950 e foi influenciada por seus pais – o pai era um político socialista que virou empresário, e sua mãe a ensinou a desenhar. Ela cresceu como uma muçulmana tradicional, estudando em uma escola religiosa. Durante sua infância no Iraque, muçulmanos, judeus e católicos conviviam. Nos anos 1960, tudo corria bem, as mulheres tinham poder e tudo parecia possível. Depois, Zaha foi para uma escola na Suíça, cursou matemática em Beirute e foi para a Grã-Bretanha estudar arquitetura em 1971. Desde então vive lá.

Espantosamente, a escola de segundo grau Evelyn Grace Academy, em Brixton, é seu primeiro prédio permanente na Inglaterra (o Centro de Câncer Maggie, em Kirkcaldy,  Escócia, foi aberto em 2006). Por que ela lutou tanto? Primeiro, há o argumento do trabalho dela, que tende a focar mais no espetáculo do que, puramente, no aspecto funcional. Mas, simples assim, ela não queria apenas cumprir sua função, mas sim criar prédios incríveis. “Eles devem causar um impacto na vida das ruas e chamar as pessoas para dentro. Precisam ser interessantes. Não acho que tudo deva ser igual. Essa obsessão pela uniformidade tem a ver com o período de produção industrial de massa e hoje nós não temos que olhar para as coisas desse jeito”.

Por que tantas pessoas pensavam que seria impossível para Zaha realizar seus sonhos arquitetônicos? “Não acho que as pessoas acreditam na fantasia. Lá pelos anos 1970, as pessoas perderam a fé e, na década de 1980, com todo o  conceito da pós-modernidade e a ideia de que a cidade deveria continuar como sempre foi, a coisa piorou. Até certo nível, Londres ainda sofre com isso.”

Mas talvez o maior problema tenha sido a própria Zaha. Muitas pessoas não gostavam dela. Achavam que ela era grande demais para suas botas, uma estranha, uma intrusa no meio de um ambiente tipicamente masculino. Quem precisava de uma diva falante num mundo onde os homens se davam perfeitamente bem, conversando educadamente e apertando as mãos em uma partida de golfe?

Ela diz que os tempos mudaram e as arquitetas são muito mais aceitas hoje em dia. Verdade? Onde está a próxima geração de Zaha Hadid? “Elas estão por aí”. Diga-me alguns nomes, eu peço. “Ah, elas são minhas alunas.”

Zaha me conta que tem várias alunas, mas que existe um problema prático com as mulheres. “Especialmente agora que são livres, elas cuidam da casa, dos filhos e do trabalho. E com arquitetura, eu acredito que é importante haver continuidade. Não é só das 9 às 17 horas, você não pode simplesmente ligar e desligar.”

Então, o mundo realmente mudou tanto ou ela, simplesmente, passou a fazer parte do sistema? (Depois de tudo isso, ela foi condecorada pelo príncipe Charles, em 2002, com a Medalha da Ordem do Império Britânico). Ela sorri. “Não, não faço parte dessa rede. Não estou dizendo que quero ficar à margem, mas se eu sou deixada lá, é de lá que eu vou operar. É um bom lugar para estar”.

Ela tem um amável sorriso torto e, apesar da fama de durona e quieta, há calor humano. Posso vê-la como uma mãezona, mas ela não tem filhos e mora sozinha em seu apartamento. Ela se sacrificou para chegar onde chegou? “Não, não.” Um segundo depois, Zaha muda de ideia. “Claro que afeta sua vida pessoal. Mas não porque eu tenho que sacrificar tudo por fazer isso´. É só como as coisas são”.

E existe um homem na vida dela? “Não.” Teve alguém recentemente? “Bom, não recentemente.” Ela está feliz com isso? “Não penso sobre isso dessa forma. As coisas acontecem na vida. Provavelmente há pessoas que são mais estratégicas do que eu.”

Quando foi a última vez que ela teve um namorado? “Não posso falar sobre isso. É  particular.” Por um momento, Zaha parece quase tímida. Ela acredita que os homens têm medo dela? “Não, não penso assim.” Pausa. Zaha tem fama de meter medo nas pessoas. Ela, deliberadamente, criou essa imagem? “Não, eu não criei isso. Sou muito legal e  charmosa.” E isso é verdade. Pelo menos hoje. Mas ela também é conhecida por dizer coisas como “eu não me faço de boazinha”.

“Eles não estão acostumados com uma mulher de opinião. Para os homens, a mulher não deveria ter opinião. Acho que mais aqui do que em outros lugares”. Zaha diz que os homens britânicos têm uma relação estranha com as mulheres – atrofiada, suspeita, primitiva. Por quê? “Eles têm medo das mulheres. O relacionamento entre homens e mulheres, na Grã Bretanha, não é normal. Nunca foi. Acho que isso é parte do problema. Quando eu estava na escola, tomei a decisão de ter muitos amigos homens. Mas se um homem casado quiser sair para jantar com um amigo, e acontecer desse amigo ser uma mulher, isso parece algo horrível. Talvez não tanto na América. Existem essas tensões que não são necessárias.” Agora, Zaha está bem disposta para falar sobre o assunto. “Aqui é bem estranho. Na  Inglaterra, existem muitas pessoas que não conseguem trabalho – gente talentosa, como o arquiteto Nigel Coates. Acho que as pessoas não sabem lidar com indivíduos incomuns. Elas estão tão  acostumadas com a maneira como as coisas acontecem, que acreditam que é desse jeito que deve ser.”

Zaha já jogou golfe? “Não”. Imagine quantos prédios você poderia ter feito se tivesse feito uma turma, eu digo. Ela sorri. “Eu percebi, há muitos anos, que existe um certo mundo onde eu não posso entrar. Como mulher, você não tem acesso a todos os mundos.”

Será que ela sabe que é influente? “Hoje sim, porque as pessoas me conhecem. Mas mesmo assim eu não vou velejar ou jogar golfe com os meus clientes. Todos esses caras são muito fechados. Eu realmente fico surpresa.” E ela está tão abalada que tira os óculos. “Fui convidada para almoçar em Nova York, para conhecer alguns VIPs, toquei a campainha e eles me disseram para ir até o andar tal. Quando cheguei lá, um homem me viu e quase teve um ataque epilético, porque não eram permitidas mulheres ali. Em Nova York! Mulheres não podiam entrar naquele andar! Isso aconteceu há dois anos. Não é assombroso?”

Zaha escuta alguém tossir ao fundo. “Oi, Roger”. Ela não para de estalar os dedos. “Sempre sei onde Roger está, porque ele tosse”. Roger, o simpático assessor de Zaha, aparece. “Por que você estava no toilet?", ela pergunta. Ele aponta para o seu iPhone. “Desculpe, eu estava apenas conversando.”

Pergunto se posso conhecer o resto do apartamento. Ela concorda. O quarto dela me dá outro ataque de “cegueira da neve” – uma imensa cama branca, uma penteadeira branca com dúzias de vidros de perfume. Na frente da cama, uma grande TV de tela plana e, no banheiro, um enorme espelho curvo e cortado como uma ilha. “O único problema desse apartamento é que não tem cozinha”, Zaha diz. Como ela pode viver sem cozinha? “Eu até tinha uma, mas acabei com ela, porque era feia.” Ela cozinha? “Não. Eu tinha uma pessoa que cozinhava, mas ela foi embora. Eu saio toda hora.”

O que Zaha faz para relaxar? “Relaxar?” De repente, ela parece um pouco desconcertada, como se não tivesse entendido direito a  pergunta. “Relaxar? Nada.” Com prédios em construção na França, Inglaterra, Itália, Azerbaijão, Espanha e China, não há muito tempo para descansar. O que o príncipe Charles disse quando entregou à Zaha sua medalha? “Ele me perguntou se eu trabalhava na  Grã-Bretanha.” Morri de rir. “Verdade.” Você acha isso engraçado? “É, a Grã-Bretanha é um lugar engraçado.” E é também o seu lar? “É sim. Na verdade, gosto daqui.” O que ela gosta no país? “É à moda antiga, cinza.” Talvez Zaha não se destacasse tanto em outros lugares? “Não sei. Na China eu me destaquei. Esse é o meu jeito.”

Texto: Simon Hattenstone, publicado no Guardian em outubro de 2010