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Sofrimento é maior para aquele que não aceita contradições da vida

Nahman Armony Publicado em 13/09/2006, às 15h54

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Por menos que tenhamos consciência, a mentalidade da época em que vivemos influencia nossas emoções, sofrimentos e alegrias. Estamos condicionados pela cultura, por exemplo, a resolver nossos dilemas, incluindo os amorosos, dentro de uma norma de exclusão: não conseguimos conviver com paradoxos, contradições; tudo precisa de definição clara, ou é isso ou é aquilo. A convivência entre o que é ou parece ser incompatível, sejam idéias e opiniões, sejam comportamentos e realidades, coloca-se para nós como impossível. Só que essa maneira de pensar nem sempre vigorou no Ocidente. Houve um tempo, na Grécia antiga, em que os dilemas não tinham de ser resolvidos. Aceitava-se a coexistência do inconciliável, isto é, aceitava-se o paradoxo. Não vigorava o "verdadeiro e falso", mas sim o "velamento e desvelamento": o que estava encoberto num certo momento não era necessariamente uma falsidade, pois poderia ser descoberto no momento seguinte, enquanto o que antes estava exposto passava à condição de oculto. Foi com Parmênides (por volta de 515 a.C.) e a disseminação das idéias dos filósofos da natureza que surgiram as figuras lógicas do verdadeiro e do falso - logo incorporadas por Platão (427-347 a.C.) à sua concepção de um mundo de idéias verdadeiras, modelares e eternas. Os dilemas tinham de ser resolvidos eliminando-se uma das alternativas em jogo para deixar a verdade reinar pura, brilhante e única no universo do pensamento. Estava instituída a contradição, que exigia escolhas. Os sentimentos ambíguos eram repudiados e deveriam ser resolvidos a qualquer custo. Com isso se acrescentou mais sofrimento àquele já inerente aos relacionamentos amorosos. Um impasse comum é o amante desejar, por um lado, realizar uma plena entrega de si mesmo ao parceiro e, por outro, temer a perda do núcleo de sua personalidade. Esse dilema, por si só doloroso, causa ainda mais angústia quando a pessoa se coloca a exigência de resolvê-lo custe o que custar. Situações amorosas mais específicas podem também provocar dilemas. Imaginemos a paixão entre pessoas já comprometidas e que não conseguem abrir mão do amor antigo. Pior: imagine que um dos componentes desse casal é livre e exige do outro uma definição. Os dois enfrentarão dilemas: o casado deve escolher entre separar-se ou não e o solteiro terá de saber o que fazer se ocasado optar por não se separar. Qualquer das soluções é difícil e leva a sofrimento atroz, que envolve sentimentos como ciúme, desvalorização, medo, além da obrigatoriedade da escolha. O dever de optar entranhado no paradigma proposto por Platão, pois, ainda nos assombra. Mas essa mentalidade está em declínio. Na física quântica já não se pergunta se a luz é onda ou partícula. Admite-se que seja ambas. O dilema aparece não como contradição, mas como paradoxo. Transplantar essa concepção para a alma humana, porém, é algo complicado, que exige grande trabalho pessoal e certamente será uma tarefa para várias gerações. Se compararmos a letra de um antigo bolero com produções mais recentes, no entanto, veremos que o processo já está em curso. Em um espanhol fácil de entender, o bolero Nosotros, de Pedro Junco (1920-1943), diz: "Nosotros/ que nos queremos tanto/ debemos separarnos/ no me preguntes más/ No es falta de cariño/ Te quiero com el alma/ Te juro que te adoro/ Y en nombre de este amor/ Y por tú bien te digo adiós". Já Vinicius de Moraes (1913-1980) escreveu: "Sei lá, sei lá/ A vida é uma grande ilusão/ Sei lá, sei lá/ A vida tem sempre razão". E Zeca Pagodinho (46), por sua vez, ensina: "Deixa a vida me levar (vida leva eu)..." Pelo jeito, estamos aprendendo a viver paradoxalmente e isso talvez nos livrará de boas doses de ansiedade.