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PIT STOP: Carlos Drummond de Andrade

Redação Publicado em 03/02/2009, às 12h56 - Atualizado às 13h08

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Obra da artista plástica Leillah Costa - Divulgação
Obra da artista plástica Leillah Costa - Divulgação
No próximo dia 5, Carlos Drummond de Andrade ganha uma exposição em sua homenagem, na Casa das Rosas, em São Paulo. Diálogos com Drummond apresenta as obras do poeta sob o olhar de 21 artistas contemporâneos. Eles fizeram uma releitura dos poemas do modernista mais influente da literatura brasileira por meio de metáforas visuais, que permitem aprofundar a compreensão de seus sentidos através dos poemas. Entre os poemas mencionados, está Mas Viveremos, que ganhou uma obra da artista plástica Leilah Costa, um mosaico de vidro com a frase "Na cidade estava escrito um poeta", uma alusão à frase "No mar estava escrito uma cidade". Acompanhe abaixo:






MAS VIVEREMOS Já não há mãos dadas no mundo. Elas agora viajarão sozinhas. Sem o fogo dos velhos contatos, que ardia por dentro e dava coragem. Desfeito o abraço que me permitia, homem da roça, percorrer a estepe, sentir o negro, dormir a teu lado, irmão chinês, mexicano ou báltico. Já não olharei sobre o oceano para decifrar no céu noturno uma estrela vermelha, pura e trágica, e seus raios de glória e esperança. Já não distinguirei, na voz do vento (Trabalhadores, uni-vos...) a mensagem que ensinava a esperar, a combater, a calar, desprezar e ter amor. Há mais de vinte anos caminhávamos sem nos vermos, de longe, disfarçados, mas a um grito, no escuro, respondia outro grito, outro homem, outra certeza. Muitas vezes julgamos ver a aurora e sua rosa de fogo à nossa frente. Era apenas, na noite, uma fogueira. Voltava a noite, mais noite, mais completa. E que dificuldade de falar! Nem palavras nem códigos: apenas montanhas e montanhas e montanhas oceanos e oceanos e oceanos. Mas um livro, por baixo do colchão era súbito um beijo, uma carícia, uma paz sobre o corpo se alastrando, e teu retrato, amigo, consolava. Pois às vezes nem isso. Nada tínhamos a não ser estas chagas pelas pernas, este frio, esta ilha, este presídio, este insulto, este cuspo, esta confiança. No mar estava escrita uma cidade, no campo ela crescia, na lagoa, no pátio negro, em tudo onde pisasse alguém, se desenhava tua imagem, teu brilho, tuas pontas, teu império e teu sangue e teu bafo e tua pálpebra, estrela: cada um te possuía. Era inútil queimar-te, cintilavas. Hoje quedamos sós. Em toda parte, somos muitos e sós. Eu, como os outros. Já não sei se vossos nomes nem vos olho na boca, onde a palavra se calou. Voltamos a viver na solidão, temos de agir na linha do gasômetro, do bar, da nossa rua: prisioneiros de uma cidade estreita e sem ventanas. Mas viveremos. A dor foi esquecida nos combates de rua, entre destroços. Toda melancolia dissipou-se em sol, em sangue, em vozes de protesto. Já não cultivamos amargura nem sabemos sofrer. Já dominamos essa matéria escura, já nos vemos em plena força de homens libertados. Pouco importa os dedos se desliguem e não se escrevam cartas nem se taçam sinais da praia ao rubro couraçado. Ele chegará, ele viaja o mundo. E ganhará enfim todos os portos, avião sem bombas entre Natal e China, petróleo, flores, crianças estudando, beijo de moça, trigo e sol nascendo. Ele caminhará nas avenidas, entrará nas casas, abolirá os mortos. Ele viaja sempre, esse navio, Essa rosa, esse canto, essa palavra.