CARAS Brasil
Busca
Facebook CARAS BrasilTwitter CARAS BrasilInstagram CARAS BrasilYoutube CARAS BrasilTiktok CARAS BrasilSpotify CARAS Brasil

O misterioso personagem sem nome que freqüenta o discurso feminino

Alberto Lima Publicado em 30/01/2008, às 15h35

WhatsAppFacebookTwitterFlipboardGmail
Alberto Lima
Alberto Lima
Observando a fala de mulheres, sobretudo em depoimentos sobre sua vida, chama-me a atenção a incidência de um elemento de discurso que, aqui, merecerá destaque em maiúsculas: ELE. O fato leva-me a crer que o termo alude a um "ente" portador de significado conhecido e compartilhado pelo universo feminino. Vou tentar descrever o fenômeno e, para isso, procurarei contextualizar o uso do termo. No belo documentário Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho (74), a certa altura de seu depoimento, algumas entrevistadas introduzem a referência a um certo ELE, como se o interlocutor soubesse a quem se refere. Em uma das entrevistas, Coutinho indaga sobre quem seria tal pessoa. Ela responde (era o homem com quem viveu por algum tempo), mas, pelo tom de voz, aparentemente esperava que ele já soubesse de quem ela estava falando. Na situação clínica, que é meu dia-a-dia, ELE entra em cena a todo momento. Já me acostumei e não pergunto "ELE, quem?" Mas não deixo de estranhar a situação. Por que ela não diz "José" ou "meu ex-marido", "meu namorado", "o pai de meus filhos", "o marido de minha filha"?Emgeral, o discurso assume tom confidencial, numa tentativa, creio, de angariar cumplicidade de minha parte, o que me leva a me sentir como merecedor de conhecer um segredo dela. Quando ELE entra na conversa, a voz da analisanda fica mais grave, seu corpo se aproxima de mim, ainda que discretamente. O que mais se destaca, porém, é o fato de que a narrativa é subitamente interrompida em seu fluxo - o assunto é invadido por uma espécie de aposto - para incluir uma informação, geralmente em off, sobre ELE. Assim: "Eu guardei as revistas e fui ao shopping. ELE não me deixava dirigir o carro d'ELE nem numa necessidade. O shopping estava infernal..." A impressão que o interlocutor tem é a de que ELE é o pano de fundo para toda vivência, memória, argumento, cenário. Num diálogo, por exemplo, é comum e esperada a formação de imagens - tanto na mente do emissor, quando na do receptor da mensagem. A pessoa diz que foi ao shopping e eu, que a ouço, mentalizo a idéia de um shopping, supondo que ela também tenha em mente a memória do lugar. Mas descubro, surpreso, que qualquer que seja o assunto em pauta paira na memória da mulher a imagem de um ELE, o ELE de sua vida. Isso ocorre com todas as mulheres? Imagino que não, mas acontece com muitas. Eu percebo que nenhuma mulher estranha a presença desse ente no discurso de outra. Quem é esse personagem? Depreendo que se trata de um homem único, parceiro em uma história relacional, no âmbito supostamente amoroso. Filhos, pais e colegas de trabalho não são ELEs. ELE é um homem importante na vida da mulher, pelo papel que desempenhou e pelo significado que teve. Mas não é, ou não foi, amado. Os amados são chamados de Pedro, Antônio, Carlos, meu marido, meu genro. Os importantes, porém "difíceis" (por terem sido abandonadores, péssimos parceiros, ainda que excelentes amantes; por a mulher ter-se sacrificado, ter prescindido de um grande amor para viver com ele), são ELEs. Creio que não há fenômeno equivalente na psique do homem. Um ente chamado ELA, por exemplo. Não sei. Vou observar.