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Às vezes é necessário abrir mão da verdade para preservar a relação

por Nahman Armony* Publicado em 29/11/2010, às 20h53 - Atualizado em 30/11/2010, às 18h22

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Às vezes é necessário abrir mão da verdade para preservar a relação
Às vezes é necessário abrir mão da verdade para preservar a relação
Uma longa tradição dicotômica, que teve seus expoentes no grego Platão (427-347 a.C.) e no francês René Descartes (1596-1650), nos acostumou a enxergar o mundo por intermédio de extremos como bom/ mau, justo/injusto e saúde/ doença. Atualmente estes extremos têm se suavizado, propiciando a percepção de uma zona intermediária, o que provoca dificuldades éticas. Trataremos aqui da dicotomia verdade/ mentira. Começarei por uma situação simples: vemos seguidamente na vida e na ficção alguém dizendo para uma pessoa prestes a morrer, ou acometida de um mal incurável, a mentira do "está tudo bem", "tudo vai dar certo". Trata-se de uma mentira? Ou é uma questão de foco? Esta pergunta é pertinente, pois o conhecimento bruto e súbito da realidade poderá fazer a pessoa sentir-se ainda pior e provocar mais sofrimento. Quando o psiquiatra lida com pacientes psicóticos deve tomar o cuidado de não tocar em assuntos para os quais haja suscetibilidade exagerada, levando a reações de ansiedade, agressividade, pânico, confusão mental. Diante de delírios esquizofrênicos, não se deve contrapô-los à realidade para não despertar reações excessivas. O psiquiatra ou o analista deve permanecer silencioso, o que certamente criará uma situação ambígua, na qual o paciente poderá vir a ter a certeza de que o interlocutor concorda com ele. Uma ambiguidade cuja função ética é evitar situações de descontrole. Todos temos zonas de hipersuscetibilidade. Numa relação de casal, se uma dessas áreas é revelada pelas palavras do parceiro, a isto se pode seguir uma crise de conseqüências funestas, seja no âmbito pessoal, com prejuízos corporais e psíquicos, seja no âmbito da união, quando a pessoa ofendida em sua autoestima e ameaçada em seu equilíbrio psíquico fecha definitivamente a porta da relação. Nestes casos, caberiam a omissão, a concordância ambígua e a distorção tranquilizadora. Por exemplo: uma pessoa que tenha dificuldade com dinheiro e que se a reconhecesse ficaria psiquicamente desequilibrada por considerar a usura uma baixaria não poderia ouvir do parceiro nenhuma alusão a esta característica; criar-se-ia um mal-entendido, uma idéia deliroide que a faria reagir com fúria, com depressão, com confusão, com extrema ansiedade. Se rola entre esses parceiros aquilo que em vários artigos meus chamei de "paixão visceral", uma paixão que não admite outra coisa senão a continuidade da intimidade amorosa, e que implica, por isso, a aceitação de aspectos imaturos do ser amado, aquele assunto (a usura) não poderá ser tocado. Deverá ser evitado até que o progresso da relação permita que ele seja tangenciado, até que eventualmente, um dia, se possa falar abertamente dele. Para conservar a integridade, a força da relação, o próprio relacionamento é necessário lançar mão da omissão, da ambiguidade, da tergiversação. Pode-se dizer que aqui a ética não é a da verdade, mas da preservação de uma relação amorosa que aceita as partes imaturas (psicóticas) do outro. É claro que existe a esperança de que a verdade do amor, gerando um comportamento sensível e adaptado às situações, acabe por promover um amadurecimento dos aspectos dissociados, possibilitando sua saída das trevas e tornando viável uma relação mais transparente.